Quando a Semana de Arte Moderna e seu manifesto, com sua arte, sua poesia, seu modo de ler o país acontecem, há aí o movimento de romper com os padrões vigentes num espaço de construção de uma nova estética. Um marco histórico-cultural. O exercício desta reflexão visa trabalhar com alguns conceitos freireanos que correspondem a um marco histórico-educacional caracteristicamente modernista, num movimento que restabelece a problematização da Educação inserida na realidade brasileira .
O movimento modernista nas artes traz como principais aspectos a aproximação da linguagem popular, seus saberes e suas coreografias. Apresenta uma outra lógica de criação, a partir do vivido, do ambiente próximo com traços de criticidade. Da mesma forma como o modernismo, de caráter dito antropofágico, critica as regras importadas e a falta, pois de liberdade de expressão e construção própria. Era preciso registrar o Brasil em suas cores, em suas formas, em seus grupos étnicos.
Entendendo a antropofagia, em tupi-guarani, como o ritual do homem que come, deglute o alheio para produzir algo próprio, nos remete ao ponto de partida de compreender as regras importadas para daí criar as suas próprias maneiras de olhar o mundo e de representa-lo na tela, na poesia, no romance, na música, na escultura e, porque não, na teorização educacional.
Como Oswaldo de Andrade destaca, a antropofagia é uma metáfora da assimilação crítica de ideias e modelos para a produção de algo verdadeiramente nacional. Ou seja, é resultante de uma base teórica mais contexto/cultura. Há no movimento modernista originalidade e criatividade quando se exercita a problematização na leitura de realidade. É o que Paulo Freire nos apresenta, principalmente quando cria, discute e teoriza sua experiência em Angicos (método de alfabetização) e quando trata da educação no livro Pedagogia do Oprimido.
O Manifesto Antropofágico é contrário à reprodução da cultura estrangeira e se apresenta como ressignificação das formas estrangeiras com um olhar próprio para a construção de uma identidade nacional a partir da realidade vivida.
Vejamos Baporu, de Tarsila do Amaral: pés e mãos cravadas na terra e a raiz sendo iluminada, crescida, surgida sob o olhar e a influência da Luz(sol), como conhecimento refletido destes dedos do fazer, do sentir, do perceber a si próprio.. Cenários artísticos que deflagram debates, impõem a reflexão, desorganizam as certezas e as formas únicas de criação.
E em Paulo Freire, o que atesta a sua modernidade? No conceito, por exemplo de conscientização, presente em Pedagogia do Oprimido e A importância do ato de ler, nos anos 60. Ali a consciência da realidade nacional e da condição do oprimido explorado pelo opressor é condição sine qua non para ir além da leitura da palavra, efetuando leitura de mundo no processo de alfabetização. Assim, a linearidade modernista de Paulo Freire se coloca neste veio teórico de que a História se faz com a construção de um sujeito histórico a partir de uma consciência crítica formada pela problematização de suas condições de vida e pelo seu lugar na sociedade capitalista. Como mãos na terra, conhecimento iluminando, a planta que viceja, a realidade que sofre mudanças.
À Educação, Paulo Freire condiciona o conhecimento da realidade, não como Ivo viu a Uva, mas com o real gerando palavras com significados que comprometem a ação. Antropofagicamente, neste caso, Paulo Freire traz de Vieira Pinto a indicação de que a autoconsciência abre os caminhos do desenvolvimento, porque promove a consciência de classe que garante a mudança da sociedade brasileira tão ainda colonizada pelos estrangeirismos no próprio currículo escolar.
Para Daniel Streck (2000), a modernidade propõe a emancipação do homem e para se emancipar é necessário que ele tenha autonomia, aja enquanto sujeito de forma esclarecida através de uma razão crítica. Como afirma Kant , segundo o supracitado autor, o indivíduo autônomo é aquele que se libertou de sua minoridade e que tem a coragem e a disposição de fazer uso da razão. Sua palavra de ordem era “sapere aude” (“tenha coragem de fazer uso do seu próprio entendimento”). Mas como criar indivíduos autônomos? Historicamente se acreditou que isto poderia ser feito também e principalmente através da educação. Por isso, a pedagogia moderna tenta cumprir o ideal iluminista se propondo como pedagogia do sujeito, dos cidadãos críticos. Podemos afirmar que a pedagogia de Paulo Freire é expressão destes ideais iluministas oriundos da modernidade. Seguindo a tradição iluminista, também para ele a educação é instrumento importantíssimo para a emancipação humana. Vincula emancipação a uma postura crítica expressa com o termo conscientização que é objeto e finalidade da educação.
Assim, no aprofundamento teórico, Freire traz, na Pedagogia do Oprimido , a necessidade da Educação vislumbrar a mudança pelo conhecimento da própria realidade, tirando o sujeito de sua condição de subalternidade para assumir seu sentido histórico de existência. Por isto, a necessidade de denunciar a massificação, a pasteurização da educação escolar como educação bancária, para transformá-la, via Pedagogia do Oprimido, numa educação libertadora, num modelo próprio, como fez com o método de alfabetização de adultos. É o lugar da redenção, da força necessária para a um movimento libertador fundado na dialeticidade da denúncia da educação bancária e do anúncio de outros caminhos pedagógicos, do que incomoda e do que se deseja para as novas gerações.
É do modernismo a criação de discursos definidores de categorias a serem aprofundadas e a Pedagogia do Oprimido se expande, se refina em obras subsequentes de Freire, apontando a importância da resistência e da autonomia do olhar e do fazer, como a práxis autêntica na criação de outras leituras, novas possibilidades É uma aproximação com categorias que refinarão o modernismo e que será chamada de pós-modernidade, modernidade tardia, etc. As reflexões de Paulo Freire, principalmente as primeiras, apontam o caminho político da emancipação como podemos ver em Cartas à Guiné Bissau, Educação como prática da liberdade. A partir do livro Política e Educação, como momento de transição, Freire revisita as categorias dialogicidade, conscientização e emancipação com elementos e perspectivas da pós-modernidade, se debruçando sobre questões como multiculturalismo, subjetividade-objetividade.
Em Pedagogia da Esperança, surge uma visão de trama para analisar a educação e a educação brasileira, em que seus sujeitos se emaranham, se soldam em seus contextos e daí a necessidade maior de diálogo e de ressignificações de conhecimento(conhecendo melhor o que já se conhece e conhecendo aquilo que antes não se conhecia).É o gerúndio e a construção diária da prática pedagógica com vistas à emancipação, como resultante do próprio modo de pensar freireanamente a educação a partir do modernismo.
E é quando Paulo Freire, ao fincar seus dedos na terra como Baporu, esmiuça a educação bancária em nossas escolas e aponta a importância de uma Pedagogia emancipatória que ele se universaliza, se torna referência em educação. Como Tarsila do Amaral e todos os artistas da Semana de Arte moderna também projetaram um outro país, com imensas possibilidades. Legado de tantos e tantas, esperança e criação sempre, para além de subjugações ideológicas.