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Image by Annie Spratt
  • Foto do escritorRita Stano

Uma vida em seteCenas

I

Com seis anos, foi entregue a uma outra família com a promessa de ser cuidada, educada, sustentada.

 Para nunca mais sentir fome,  ficou longe da mãe, não mais viu seus irmãos nem dormiu na mesma casa que eles.

Começou a brincar de casinha de forma séria.

No banquinho posto junto à pia da cozinha, ela lavava pratos grandes, copos e xícaras de vidro, garfos, facas, colheres.

Aprendeu a usar a vassoura para, com ela, tirar todo o lixo produzido na superfície, porque o mais podre era inalcançável.

 

II

Lavava e passava roupas, de adultos e das crianças que iam nascendo naquela fazenda, junto com jumentos e galinhas, patos e porcos.

Também cuidava do jardim, plantando flores, combinando cores e se  especializando em chuchus, beterrabas, couves.

Era infância de adulto e o campo era seu quintal.

Disseram-lhe que a escola era lugar chato, de pouca liberdade, de imensa bobagem.

Não pode se fascinar pelas letras, não conseguiu escrever bilhetes, nem ler histórias.


III

Seu mundo era o mundo permitido.

Restrito, delimitado por aprendizados práticos de crochê, de costuras, de varreduras e limpezas.

Brincou de ser mãe, também, embalando bebês, garantindo a brancura das fraldas, recebendo suas gargalhadas como afeto para vida inteira.

Passeava na cidade, estranhando seu movimento, amedrontada com seus barulhos e tantas pessoas.

Ali, antes de correr de volta para a fazenda, podia comprar na conta da loja de roupas, um ou outro esmalte e alguma outra coisa que precisasse.

 

IV

Este era seu pagamento ou a impressão de que fazia parte daquela família.

Parecia que nada lhe faltava.

Tinha uma casa imensa para cuidar, as crianças cresciam e a acarinhavam em momentos de folga.

A vizinhança ajudou a fazer sua fama de cozinheira de mão cheia, de ser tão boa para todos.

Seu corpo tomou forma, suas curvas a embelezaram, seu andar saudável encantava.

 

V

E o tempo foi sedimentando o modo de vida, a vida mesma, traçada em pequenos pedaços, em largos aparentes limites.

Os anos passavam, de criança feito adulta tão cedo, a maturidade lhe trouxe beleza plena, amaciada pela pele bem cuidada, pelo olhar sereno de uma desproteção não percebida.

Um dia, a casa da fazenda tinha que ser pintada, reformada.

 E Ele chegou brejeiro, vivido.

Não conseguiu mais tirar os olhos daquela mulher bonita, forte, cheia de curvas e bondades, desfilando belezas.

 

VI

Dias e semanas recolorindo os dias dela e dele.

O ar foi se condensando em olhares ternos, em beijos roubados, em conversas ao pé do ouvido, em gestos pequenos de carinho.

De repente, a família se mostrou assustada.

Como ousa sonhar outra vida? Quem permitiu a paixão desenfreada?

Ele, impetuoso, com a coragem dos que se apaixonam, se aproximou mais, deixou que ela se encantasse e o desejasse.

 

 

VII

Ela, numa dança desconhecida, se permitiu sentir, desejar, querer e lutar.

Por um amor que insistia em viver, por um espaço que pedia pela primeira vez.

E Ela foi viver a sua própria casinha, enfeitando seu jardim, descobrindo o mundo, que agora era seu.

Entre letras e números, carinhos e cuidados, encantou-se por Ele.

Ela e Ele, vivendo o que se tentou calar.

 

 

 

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